Entre Pantera Negra e Atlético Mineiro, os humilhados são exaltados


Lá em 2013 o Galo, vulgo Atlético Mineiro, ganhou, pela primeira vez desde que os atleticanos têm lembrança, um grande campeonato: a Libertadores da América. Foi duro, foi sofrido, depois de tantos quases eu duvidava que o Atlético chegaria lá, mas chegou. Não me entenda mal, eu sou atleticana, amo meu time. Mas, quando se é Atleticano, se sabe que a gente escolhe o time não pelos seus troféus, mas pelo que ele representa, por como ele me emociona, pela alegria que inspira na minha família. Pantera Negra tem um pouco disso para mim. É um filme bom, com problemas, mas que me encanta por todo o frenesi ao seu redor. 



(SPOILERS A SEGUIR!!!)


Talvez o maior acerto de Ryan Coogler foi desenvolver bons personagem, congruentes, com boas histórias e arcos fechados, completos, em sua maioria. Os dois personagens principais T’Challa (Chadwick Boseman), e Eric Killmonger (Michael B. Jordan), representam bem como duas pessoas, com o mesmo objetivo, podem ter ideias tão diferentes. Como se trata de um filme com questões raciais latentes, Coogler evoca o arquétipo dos dois principais líderes do movimento por direitos civis nos Estados Unidos, Martin Luther King (T’Challa) e Malcom X (Killmonger).


Sobre a relação dos dois personagens, o fato de serem primos adiciona carga dramática. Killmonger lida com o abandono em múltiplas esferas, sem pai, sem a presença do estado, e tem desde muito cedo que se garantir sozinho. Isso tudo sabendo que é descendente, príncipe, de uma nação negra rica, próspera e omissa. T’Challa é o oposto: tem tudo que Killmonger não tem e se mantém ignorante, não sabe que seu pai não é um homem sem máculas. Não se engane, com essa relação Coogler aborda um tema caro à sociedade afrodescendente: a ausência paterna, seja motivada pela violência, pela morte do pai, ou pelo simples fato de decidir ir embora.


Outro tema embutido ai é descobrir que o seu pai não é necessariamente o que ele aparenta ser, a necessidade de lidar com isso e fazer diferente. Vale lembrar que esse tem sido um tema recorrente na Marvel. Alô, Tony Stark? Alô, Star-Lord? É na possibilidade de fazer algo diferente que Coogler e Joe Robert Cole, a meu ver, pecam. T’Challa faz o mesmo que T’Chaka, não quebra o ciclo, não propõe ao seu primo um sistema cooperativo, uma conciliação. Isso foi triste, principalmente porque é muito ruim ver Killmonger sofrendo. O bom é que o melhor discurso do filme vem daí, com Killmonger pedindo a sua morte, evocando seus antepassados que preferiram a morte no mar às correntes Novo Mundo.





Falando em Killmonger, que personagem! Michael B. Jordan faz um vilão que deveria ter sido poupado, que tinha potencial para continuar. Já tá na hora de alguém, além do Loki, sobreviver. É ele que traz atualidade para o filme, evocando temas como colonização, exploração dos negros, escravidão. Em resumo, ele reclama da falta de reconhecimento dos negros como cidadãos. Além disso, é incrível ver como o modo de falar de Killmonger é diferente dos demais personagens. Ele fala o que alguns pesquisadores chamam de African-American English, uma variação do inglês americano, que contrasta lindamente com o inglês falado pelos wakandenses.


Há, ainda, nesse campo da língua, que reconhecer o cuidado que o filme teve com o idioma falado em Wakanda. Soa como algo africano e tem até os cliques, um tipo de som muito comum nos idiomas africanos que para nós, falantes de línguas latinas, parecem só o estalar da língua. É evidente, não só nesse aspecto, mas como em todos os outros, o cuidado com a criação de Wakanda, que segue a onda do afrofuturismo e é lindo ver esse mundo, ver como eles respeitam suas tradições e obedecem seus rituais. Faz pensar, mais uma vez, no mundo contemporâneo. Por mais evoluídos que nós nos consideremos, rompemos definitivamente com as tradições, com o que acreditávamos ser moral e bons costumes no passado, nos nossos rituais? Acho que a ascensão de grupos extremistas prova que não.


Sobre política atual, a primeira cena extra do filme parece ter sido feita sob medida para Donald Trump. Em uma assembleia da ONU, para confirmar a abertura de Wakanda para o mundo, T’Challa critica a construção de barreiras e propõe a construção de pontes. Além disso, durante o filme, T’Challa e W’Kabi (Daniel Kaluuya), também discutem questões como o recebimento de refugiados e como fazer a abertura de Wakanda para o mundo.


Até o vilão é negro e as mulheres não são coadjuvantes




Sempre quis ser paquita (aquelas assistentes de palco da Xuxa), mas não podia. Elas eram todas loiras. Fantasiar-me de Valquíria, antes de Thor, ou de guerreira viking era, para dizer o mínimo, estranho. Depois de Pantera Negra, agora eu tenho a possibilidade de além de Michonne, me vestir de Dora Milage. Ou, ainda, escolher entre uma das mil maravilhosas personagens femininas que estão por ali. Tem Danai Gurira como Okoye, a general das Dora, tem Lupita Nyong’o como Nakia, a agente secreta e interesse romântico de T’Challa. Quer mais? Então toma Shuri, uma mulher negra inteligente pra daná, responsável por todas as criações tecnológicas de Wakanda, corajosa, jovem e engraçadíssima. Ah, ela é irmã do T’Challa, ou seja, uma princesa. Chupa Elsa! #MeghanMarkle





Mais do que ter essa c*ralhada de personagem, Ryan Coogler acerta ao dar a essas mulheres papeis importantes, diálogos completos, profundidade. Elas são pessoas que fazem e, por mais que sejam coadjuvantes e sirvam a T’Challa, não são subservientes e são complexas. Nesse quesito, Okoye é a mais interessante. Ela se recusa a seguir T’Challa porque o seu dever é com Wakanda. O nome disso é integridade.


Outra surpresa que o filme me trouxe foi o pequeno papel de Ulysses Klaue (Andy Serkis. Não foi ruim, mas foi surpreendente como descartaram esse vilão logo logo, para abrir espaço para quem realmente importava, Killmonger. Mostras a escolha acertada de mostrar que até o vilão é negro. De certa forma, isso diminui um certo maniqueísmo e dá complexidade aos negros que são capazes de serem vilões e mocinhos de si mesmos, não precisam de brancos para isso. Além disso, o filme me deu o prazer de, pela primeira vez em meus 30 anos, tratar o branco como exceção no cinema, e não como a regra. Sabe quando você está comentando o filme com alguém que não lembra o nome dos personagens e aí você tem que dizer: Ah, é aquele negro. Então, eu tive que falar: “É aquele branco, que tava roubando os negócios”.


Nos papéis masculinos há que destacar ainda o "vilão" M'Baku (Winston Duke), engraçadíssimo e que completamente roubava a cena quando aparecia. Um antagonista com o coração e com as demandas no lugar. Quem não tava com nada no lugar era o W’Kabi, que muda de opinião do nada, muda de lado do nada.



Tipo o Galo




Assim como do Galo, eu esperava mais da direção de Ryan Coogler, eu esperava um filme mais combativo, mas político, o que não veio. Eu esperava mais das cenas de luta, com um CGI meio doidão, esperava ver mais fotos do Michael B. Jordan sem camisa. Mas não foi.  Pantera Negra é ainda um filme da Marvel e isso não é necessariamente ruim, só quer dizer que algumas coisas precisam ser respeitadas, que o filme ainda precisa ser entretenimento blockbuster.

Mas, assim como o Galo, o filme me emociona por como emociona ou movimenta as pessoas a minha volta. Tem tanta gente se sentindo representada por esse universo, tirando fotos com pôster, se vestindo para ir ver o filme. No final, não me importa mais os erros ou as falhas, não ligo se desligaram as luzes do estádio na semifinal, não ligo se a representatividade é interessante, também, porque vende. Pantera Negra é para nós negros o que a conquista da Libertadores foi para os atleticanos:  os humilhados sendo exaltados. Só espero que o título não venha uma vez a cada 100 anos.


2 comentários:

  1. a língua de Wakanda soa tão africana, por que é uma lingua africana verdadeira, a xhosa, uma das línguas oficiais da África do Sul, foi o ator do t'chaka , que é fluente, que deu a ideia de usarem lá em civil war.

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